ARTIGOS E CRÔNICAS
SESSÃO EXTRAORDINÁRIA CONTINUAÇÃO
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SESSÃO EXTRAORDINÁRIA
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Conto erótico
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Crônica da vida real
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Crônica desnecessária
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Crônica para depois de amanhã
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Crônicas
Crõnica para depois de amanhã
Jorge Washington T. Marques
Imagino que os trinta reais não valem mais que o talão de luz e a falta de um quilo de arroz pro almoço de mundinho, o filho caçula que foi pra escola sem tomar café. Pensando nisso, ela saiu para as ruas empunhando aquela bandeira com as cores do contragosto, decidida a escorar seu tédio e balançar aquele pedaço de pano com o olhar desenchavido, a fim de atrair os que ali passavam sem ao menos percebe-la. Afinal todos que passavam já sabiam o que estava escrito e a que cor pertencia aquela pobre criatura, e sabiam ainda que aquilo não era nenhuma proposta política, afinal era só uma bandeirola pálida e mal feita que pouco podia significar além de uma disputa para ver quem colocava mais cores na rua, como se todos os dois em vez de políticos estivessem disputando para ver quem era mais capaz de ser arco-íris.
Mas essa história de ser arco-íris não é por acaso, pois é que desde criança se ouviu falar que lá no fim tem um pote de ouro, seja da saúde, da educação, ou de outro pote público, o que importa é que ouro é ouro, e enricar é preciso mesmo que seja nas costas de quem nasceu para carregar para o fim do arco-íris o pote de ouro para entregar de voto a voto para o lobo mau (opa, essa história é outra).
Voltando para aquela mulher, eu a olhava lá de dentro da sala de aula, a pobre criatura de Deus, que ali lhe escorria sobre o rosto o suor temperado com a sapequez do sol ardente que lhe ardiam os olhos, mas não impedia de lhe fazer escancarar timidamente um sorriso, o qual dividia a brancura do osso com o pretume das cáries, que de cara representava o que de mais evidente era feito pelo poder público: a falta de assistência odontológica ao povo mais pobre.
A bandeirola na mão ia de lá para cá como quem não quisesse ir, mas era embalada pela lembrança dos trinta reais que receberia no fim da tarde (bem que se fossem cinquenta a bandeira dançava mais rápido, e, cem, era uma festa só), mas, mesmo sem explicação que me viesse, a maldita bandeira parecia não querer abrir, seria para não mostrar a nudez vergonhosa do número que vestia, ou por não encontrar um sopro de vento que a fizesse a mínima cócega que lhe fizesse rir naquela âmbito de tristeza.. Era entediante só de olhar.
Fiquei perplexo. Na calçada eu pude ver que eram muitas dessas mulheres enfileiradas olhando pro nada e fazendo coisa nenhuma, pelo menos é o que parecia de tão insosso que era aquela falta de paixão pelo que faziam. Mas parece que uma delas falou alguma coisa sobre pão, logo imaginei que se tratava de fome, pois só pão pressupõe comida. Bem, cruel foi meu engano, pois era mesmo de comida que ela falavam, só que ela tentava passar para as outras um pouco de animo, dizendo-lhes sobre uma cesta que naquela mesma noite ganhariam se fosse todas lá num lugar cujo nome não me vem a memória, mas posso assegurar que termina com “...pão”. (coisa de eleição, que rima como obra-prima da corrupção).
Melhor nem pensar nesse drama assistido, e bom nem lembrar o descaminho das campanhas politicas cujo tempero agora são palavrões e injúrias berrados ao microfone, que deixa claro o esvaziamento da cultura e que de projeto ficam órfãos os cidadãos. Em compensação (se é que compensa) a festa da politica já imita o carnaval de tanta alegoria, onde o povo a tem por um ou dois dias, e o eleito, quatro anos.
Se retirarmos as mulheres tristes e suas bandeirolas das ruas teríamos pessoas dialogando sobre o futuro em vez de serem furtados pela fantasia. Se proibissem os palanques que só conhecem o dicionário proibido, teríamos acesso a ideias e ideais. Se não houvessem tantos carros com laço e fita, o cidadão não seria laçado facilmente. Se o governo começasse a acertar mais, até eu mesmo renderia os meus aplausos.
Crônicas da vida real
Jorge Washington.
As faces da vida
César sentou-se ao lado de uma das colunas do barzinho que freqüentava fazia algumas semanas. Aparentava lutar em não se preocupar com as decepções que lhe marcara profundamente os últimos dias. Por ironia do destino completavam dezesseis dias que fizera cinqüenta e sete anos. Seu semblante já se confundia entre o cansaço natural e o peso que a bebida já lhe começava causar sobre os olhos. Pegou mais uma vez o copo sobre a mesa e, de forma estúpida, bebeu toda a cerveja que enchia o recipiente. Em seguida voltou seus olhos para a medalha de ouro que trazia no pescoço, a qual pertencera a seu pai, que lhe dera pouco antes de falecer, quando César ainda era um frangote. Nela César havia mandado gravar dois nomes de mulher. Supõe-se que dois dos muitos amores que lhe ocorrera em toda a sua vida, mas duas que haviam marcado profundamente o seu sentimento.
Ao olhar em uma das faces da medalha, lembrou Sara, que era uma mulher bonita. Uma mulher que andava como quem sentia orgulho de possuir uma escultura viva sob o tom de sua bela pele morena. César recordava que ao lado dela se sentia um homem completamente feliz. Não tinham muitos problemas, como sempre dizia aos amigos quando lhe perguntavam sobre as freqüentes discussões ouvidas pelos vizinhos. César nunca havia revelado a ninguém o ciúme que sentia de alguns amigos com quem muitas vezes Sara papeava na ausência dele. Preferiu sempre acreditar no perfil de mulher séria e digna que Sara se fazia parecer, fazendo-lhe acreditar no seu mais puro amor. Razão pela qual, ao chegar do trabalho no fim do dia, ao invés de trazer uma caixa de bombons, mostrou-lhe orgulhosamente o nome dela gravado no seu precioso amuleto. Ela ficou muito feliz com o gesto, afinal lembrou que a moeda dada pelo pai era para César objeto de sua maior estima. Mas, mesmo com a dedicação de César, nada impediu de alguns dias depois, ouvir os murmúrios de uma traição ao chegar próximo à porta. César sentiu-se o menor dos homens. Jogou no gramado a flor que trazia e naquele momento até desejou não ter saído mais cedo do trabalho.
Foram mais de cinco anos de sofrimento. César lutava contra si mesmo para aceitar que havia perdido Sara para seu próprio primo. Logo aquele com quem ele sempre conversava sobre os pequenos problemas em busca de aconselhamentos. O mesmo amigo que lhe dizia: Ora César, o fato de uma mulher sempre estar conversando com um homem ou andar ao lado de um, não quer dizer possa estar traindo. César agora sabia que esse é o primeiro passo para que isso venha acontecer.
Seis anos depois de muita e amarga boemia. César permitiu que sua áurea de proteção fosse rompida. Desta vez foi Jaqueline. Não houve como fugir dos encantadores olhos azuis a da sua belíssima forma escultural. Ela começou freqüentar a casa de César a cada dia com maior atenção de dona de casa, e sempre fazia com que ficasse nele a sua lembrança sedutora. César, consciente dos seus quarenta e nove anos, sentia necessidade de uma companheira e a cada dia amanhecia mais e mais apaixonado.
Resolveu logo explicar para Jaqueline que não havia apagado o nome de Sara da medalha temendo que danificasse a forma original do seu objeto de estimação. Preocupado em não desagradar a sua ninfa, como a chamava, tratou logo de mandar gravar seu nome no outro lado da medalha. O que fez Jaqueline ficar muito contente.
Alguns anos se passaram e juntos faziam sempre simples juras de amor com ternos olhares, que como diria o poeta: um amor sem legenda. Era de fato eterno, pensava César muitas vezes. Porém seu céu caiu no dia em que atendeu ao telefone e ouviu de uma voz masculina: amor, você não vem passar este fim de semana comigo? César não quis acreditar no que poderia ser essa pergunta e criou até outras possibilidades que pudessem não ser verdadeira a idéia de estar sendo traído, mas lembrou das inúmeras vezes que Jaqueline o deixava só e ia passar os finais de semana na casa de avó, no interior.
Jaqueline aos prantos lhe confessou que há mais de um ano conheceu Júlio e desde então se encontravam. César, inconformou-se e pediu que ela deixasse a casa naquele mesmo dia.
Os dias se passavam lentamente e César lutava para esquecê-la. Sentado no bar queria culpar o destino pela irônica trajetória da vida. Olhando a medalha lembrava do pai que tivera uma vida feliz ao lado de sua mãe, mas começava a duvidar da medalha que ele lhe dera. Mesmo defendendo a idéia de que seu pai fez sem a menor intenção de lhe trazer infelicidade, a medalha era um amuleto maldito, na qual colocava toda a culpa pelo seu amargo destino.
César bebia um gole atrás do outro. Para ele a vida era sair do trabalho à tardinha e sentar-se à mesa do bar, onde permanecia até às dez. Depois seguia cambaleando para a sua humilde casa no final de uma rua desbotada, quase despencando na encosta de um morro.
Alguns dias depois, uma manhã de sábado, César foi acordado pelo dono do bar que lhe pedia para que deitasse em outro lugar, pois precisava da mesa onde ele dormira a noite toda, debruçado ao lado de algumas dezenas de garrafas vazias. César se sentiu envergonhado e com o gosto áspero da bebida que tomara às toneladas durante a noite. Com isso deixou o bar e seguiu a passos desiguais, rua acima. Parou diante de uma vitrine e ficou a olhar a sua imagem refletida. Era o retrato encharcado de um homem velho, rosto emoldurado pelos cabelos grisalhos e espantalhados.
Naquele momento lembrou ardorosamente do velho pai e das palavras que dizia sobre os sonhos que reservava para seu filho. Pegou a medalha, colocou sobre a palma da mão. Olhou em ambos os lados vagarosamente e inevitavelmente leu o nome das duas mulheres de sua vida. Ali passou um filme rápido de toda a sua vida.
César se sentiu fraco. Cansado, recostou-se no muro a poucos passos depois, e sem ânimo não conseguiu evitar que seu corpo escorresse até que ficasse sentado. Por alguns instantes lutou para que aquele nó que se formava em sua garganta se desfizesse, porém, ocultando o rosto para que as pessoas que passavam não lhe vissem, chorou. Minutos depois, reuniu alguma força e decidiu seguir. Alguns metros mais, ao olhar à sua frente, no outro lado da rua, uma placa com letreiros vermelhos com o nome de uma mulher que lhe chamou a atenção.
César sentiu-se reanimado. Agora ele tinha certeza de que aquela era a mulher que faltava em sua vida, e decidiu no mesmo momento procurá-la. Era Glória, uma psicóloga. Pois ele agora, desejava como ninguém havia desejado, compreender profundamente a natureza humana.
César ainda tinha esperança de recomeçar.
Crônica desnecessária
Jorge Washington T. Marques
No comum, quando se perde a memória, quando esquecemos alguma coisa, dizemos que “deu branco”, mas na política é diferente: não deu branco porque o povo esqueceu. Posso dizer que é uma espécie de amnésia inversa, parente da ingenuidade e da imbecilidade.
Parei e quis perguntar àquele homem que risca a calçada na porta da delegacia, mas fiquei a olhar que ele escrevia uma carta ao nada, e não interessava a linguagem, pois ninguém parava para ler, meu Deus! Seria eu o demente? A mente se esvazia quando a razão me abandona... aquele homem escreve e sorri, sorri e escreve. Que coisa engraçada ele diz, se olho a calçada e vejo que ali não diz nada.
Lembrar e esquecer, esquecer e lembrar. A ordem dos tratores não vai alterar a transamazônica, mas pode sim nos deixar na poeira e no buraco. Por isso paro pra pensar que é um problema escolher, e o drama de escolher não poderia nunca ser trocado pela farra das bandeirolas e pela alegria irritante das musicas plagiadas para imitar a vida, como se a escolha fosse apenas mais uma festa onde se vai e se dança uma noite. Na verdade, por causa desse engano, a festa da eleição é um salão onde se pode dançar quatro anos, e no dia seguinte ainda temos que encarar as dores de cabeça de uma vida que dormiu bêbada por ter bebido um coquetel de todos os males repetidos sem pensar.
Mas o que mesmo escrevia aquele homem sem mente clara como seus cabelos brancos tingidos de céu. Seria uma mensagem aos que pensam ou aos que dispensam pensar. Uma coisa é certa, por trás daquela mensagem há uma ideia que ele quer nos passar: a vida não é para ser feita somente de papelão, mesmo que se deles se faça a morada e a proteção do sol ardente.
Falta ao povo pensar, pois os débeis já não pensam. Mas quem disse que por serem débeis não pensam? O Felipe, que após comer o pão, vai dormir no hospital, pois se adoecer já é o primeiro da fila, assim quem sabe é atendido a tempo e hora. O branquinho dos papelões, do qual não me veio o nome, para resolver o problema da falta de moradia, o negócio é procurar a justiça, então nada melhor do que morar na porta da delegacia. Ele não é nem doido para escolher morar lá dentro. Desta forma, quem é mesmo que não pensa? Pois quem eu pensava que não pensa, pensa! E quem eu esperava que pensassem, me parece que não pensam. Esquecem até mesmo a saúde e a segurança. Meu Deus, que mundo louco este meu.
Quando então lembrar ou esquecer não é problema quando se tem que escolher um governante, pois há muito tempo o córtex mora no lado esquerdo do peito, e pensar dispensa pensar, melhor se deixar levar por sons e sair na chuva gostosamente cantando “vai lacraia, vai lacraia” ou mais modernamente “ai se eu te pego”, pois é sempre mais fácil ir na onda do que carregar o peso de refletir, por mais que o perigo more na futilidade deste feito.
Mas de quem é mesmo o problema? Ora de ninguém, pois se não se pensa ele não existe, e se existe é só beber e dançar. Se o problema se foi não sei, mas uma coisa confesso: dancei, dançamos, dançaremos.
Não entendeu? Perdoe-me, pensei por um instante. Brasilidamente. Acordadamente. Dolorosamente.