15/10/2012 10:36

Crônica da vida real

 

 

César sentou-se ao lado de uma das colunas do barzinho que freqüentava fazia algumas semanas. Aparentava lutar em não se preocupar com as decepções que lhe marcara profundamente os últimos dias. Por ironia do destino completavam dezesseis dias  que fizera cinqüenta e sete anos. Seu semblante já se confundia entre o cansaço natural e o peso que a bebida já lhe começava causar sobre os olhos. Pegou mais uma vez o copo sobre a mesa e, de forma estúpida, bebeu toda a cerveja que enchia o recipiente. Em seguida voltou seus olhos para a medalha de ouro que trazia no pescoço, a qual pertencera a seu pai, que lhe dera pouco antes de falecer, quando César ainda era um frangote.  Nela César havia mandado gravar  dois nomes de mulher.  Supõe-se que dois dos muitos amores que lhe ocorrera em toda a sua vida, mas  duas que haviam marcado profundamente o seu sentimento.

Ao olhar em uma das faces da medalha, lembrou Sara, que era uma mulher bonita. Uma mulher que andava  como quem sentia orgulho de possuir uma escultura viva sob o tom de sua bela pele morena.  César  recordava que ao lado dela se sentia um homem completamente feliz. Não tinham muitos problemas, como sempre dizia aos amigos quando lhe perguntavam sobre as freqüentes discussões ouvidas pelos vizinhos. César nunca havia revelado a ninguém o ciúme que sentia de alguns amigos com quem muitas vezes Sara papeava na ausência dele. Preferiu sempre acreditar no perfil de mulher séria e digna que Sara  se fazia parecer, fazendo-lhe acreditar no seu mais puro amor. Razão pela qual, ao chegar do trabalho no fim do dia, ao invés de trazer uma caixa de bombons, mostrou-lhe orgulhosamente o nome dela gravado no seu precioso  amuleto. Ela ficou muito feliz com o gesto, afinal lembrou que a moeda dada pelo pai era para César objeto de sua maior estima. Mas, mesmo com a dedicação de César, nada impediu de alguns dias depois,  ouvir os murmúrios de uma traição ao chegar próximo à porta. César sentiu-se o menor dos homens. Jogou no gramado a flor que trazia e naquele  momento até desejou não ter saído mais cedo do trabalho.

Foram mais de cinco anos de sofrimento. César lutava contra si mesmo para aceitar que havia perdido Sara para seu próprio primo. Logo aquele com quem ele sempre conversava sobre os pequenos problemas em busca de aconselhamentos.  O mesmo amigo que lhe dizia: Ora César, o fato de uma mulher sempre estar conversando com um homem ou andar ao lado de um, não quer dizer possa estar traindo. César agora sabia que esse é o primeiro passo para que isso venha acontecer.

Seis anos depois de muita e amarga boemia. César permitiu que sua áurea de proteção fosse rompida. Desta vez foi Jaqueline. Não houve como fugir dos encantadores olhos azuis a da sua belíssima forma escultural. Ela começou freqüentar a casa de César a cada dia com maior atenção de dona de casa, e sempre fazia com que ficasse nele  a sua lembrança sedutora. César, consciente dos seus quarenta e nove anos, sentia necessidade de uma companheira e a cada dia amanhecia mais e mais apaixonado.

Resolveu logo explicar para Jaqueline que não havia apagado o nome de Sara da medalha temendo  que danificasse a forma original do seu objeto de estimação. Preocupado em não desagradar a sua ninfa, como a chamava,   tratou logo de mandar gravar seu nome no outro lado da medalha. O que fez Jaqueline ficar muito contente.

Alguns anos se passaram e juntos faziam sempre simples juras de amor com ternos olhares, que como diria o poeta: um amor sem legenda.  Era de fato eterno, pensava César muitas vezes. Porém seu céu caiu no dia em que atendeu ao telefone e ouviu de uma voz masculina: amor, você não vem passar este fim de semana comigo? César não  quis acreditar no que poderia ser essa pergunta e criou até outras  possibilidades que pudessem não ser verdadeira a  idéia de  estar sendo traído, mas lembrou   das inúmeras vezes que Jaqueline o deixava só e ia passar os finais de semana na casa de avó, no interior.

Jaqueline aos prantos lhe confessou que há mais de um ano conheceu Júlio e desde então se encontravam. César, inconformou-se e pediu que ela deixasse a casa naquele mesmo dia.

Os dias se passavam lentamente e César lutava para esquecê-la. Sentado no bar queria culpar o destino pela irônica trajetória da vida. Olhando a medalha lembrava do pai que tivera uma vida feliz ao lado de sua mãe, mas começava a duvidar da medalha que ele lhe dera. Mesmo defendendo a idéia de que seu pai fez sem a menor intenção de lhe trazer infelicidade, a medalha era um amuleto maldito, na qual colocava toda a culpa pelo seu amargo destino.

César bebia um gole atrás do outro. Para ele a vida era sair do trabalho à tardinha e sentar-se à mesa do bar, onde permanecia  até às dez. Depois seguia cambaleando  para a sua humilde casa no final de uma rua desbotada, quase despencando na encosta de um morro.

Alguns dias depois, uma manhã de sábado,  César foi acordado pelo dono do bar que lhe pedia para que deitasse em outro lugar, pois precisava da mesa onde ele dormira a noite toda, debruçado ao lado  de algumas dezenas de garrafas vazias. César se sentiu envergonhado e com o gosto áspero  da bebida  que tomara às toneladas durante a noite. Com isso deixou o bar e seguiu a passos desiguais, rua acima. Parou diante de uma vitrine e ficou a olhar a sua imagem refletida. Era o retrato encharcado de um homem velho, rosto emoldurado pelos cabelos grisalhos e espantalhados.

Naquele momento lembrou ardorosamente do velho pai e das palavras que dizia sobre os sonhos que reservava para seu filho. Pegou a medalha,  colocou sobre a palma da mão. Olhou em ambos os lados vagarosamente e inevitavelmente leu o nome das duas mulheres de sua vida. Ali passou um filme rápido de toda a sua vida.

César se sentiu fraco. Cansado, recostou-se no muro  a poucos passos depois, e sem ânimo não conseguiu evitar que seu corpo escorresse até que  ficasse  sentado. Por alguns instantes lutou para que aquele nó que se formava em sua garganta se desfizesse, porém, ocultando o rosto para que as pessoas que passavam não lhe vissem, chorou. Minutos depois,  reuniu alguma força e decidiu seguir. Alguns metros mais, ao olhar à sua frente, no outro lado da rua, uma placa com letreiros vermelhos com  o nome de uma mulher que lhe chamou a atenção.

César sentiu-se reanimado. Agora ele tinha certeza de que aquela era a mulher que faltava em sua vida, e decidiu no mesmo momento procurá-la. Era Glória, uma psicóloga. Pois ele agora, desejava como ninguém havia desejado, compreender profundamente a natureza humana.

César ainda tinha esperança de recomeçar.

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